Créditos: Foto pública, retirada de Nappy.
Eu não sei de qual território africano vim, muito menos de qual quilombo, mocambo ou senzala vem minhas bisavós. Mas a cor da minha pele anuncia que há 99,9% de chance de meus ancestrais terem habitado esses locais, assim como, também anuncia que não venho do norte, e que não carrego privilégios atrelados ao simples fato da cor da pele ser branca[1].
Eu sou neguinha(!!!), sem a interrogação da Vanessa – que por culpa da colonialidade[2] precisa problematizar, refletir e questionar o apagamento da conscientização de pessoas negras, e de pessoas negras de pele clara sobre sua negritude – e, propositalmente, com não apenas uma, mas muitas exclamações – porque eu sou, de fato, direito e efeito, bem escura!
Isso implica dizer, além de outras milhões de considerações, que a minha história ciente começa nos meus avós, e que, apesar dos nossos antigos não terem registrado em papel, ela não vem da escolástica, do renascimento, e da revolução francesa. Meu sobrenome, apesar de um derivado europeu, não me liga (de forma alguma) ao passado egoísta e assassino do povo de lá. Minha ancestralidade vem de Afirika[3]! E isso pulsa em minhas veias de uma forma que só Nêgo Bispo pode explicar: nossa existência e sabedoria ancestral transflui, e chega até nós. Mesmo quando vivemos em contextos totalmente desconectados da realidade e da natureza, chega pela água da chuva, por um vento que sopra, mas chega, e por isso somos tão fortes!
Por muito tempo nós, pretas e pretos da diáspora, acreditamos que não tínhamos história, e que esta começava na escravidão. Por muito tempo ouvimos e acreditamos que éramos descendentes “de escravos”, e não “de rainhas e reis escravizados”. Pessoas livres que foram sequestradas em seus territórios, diminuídas a nada, trazidas e exploradas apenas no intuito de enriquecer um continente tão menor que o nosso. O processo escravista pode ser resumido a isto: poder, ganância, dinheiro, interesse, destruição.
Porém, respeitável público, resistimos! Nos reinventamos! E reexistimos!
Demos um basta, chutamos a porta, batemos na mesa, gritamos não!
Gritamos “não!” quando nos jogamos ao mar, na terrível, injusta e desumana travessia Afirika-Brasil! Gritamos “não!” quando a GIGANTE Princesa Aqualtune deu um basta nos abusos que sofreu e, se unindo a outros, deu origem ao maior e mais resistente quilombo da história do Brasil! Gritamos “não!” quando criamos estratégias para manter nossas religiões, culturas e identidades! Gritamos “não!” quando Cheikh Anta Diop dedicou suas pesquisas para provar que toda a civilização do mundo vem de Afirika, e nossas invenções tecnológicas foram roubadas ou imitadas de lá! Gritamos “não!” quando Martin Luther King Jr. reuniu milhares de pessoas negras em um protesto preto totalmente pacífico, e dividiu com o mundo seu sonho de paz, igualdade e fim da violência contra nós. Gritamos “não!” quando nos tornamos Nelson Mandela, e quando tornamos Zumbi nosso rei, e mito! Gritamos “chega, agora não dá mais!” quando nações afirikanas lutaram por liberdade e deram um fim aos seus status de colônias.
Gritamos e confluímos junto a todos os movimentos negros, afrocentristas, abolicionistas, quilombistas, e pan-africanistas. Com os Panteras Negras, com o fortalecimento das nossas artes no movimento da Negritude e no Teatro Negro de Abdias do Nascimento. Com as escritas de nossas potentes mulheres – embora reconhecidas tardiamente – Lélia González, Beatriz Nascimento, Barbara Carine, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, e tantas outras, outros, outres…
Nas lutas dispersas e nas lutas unificadas, nos movimentos populares e nas universidades, por todos os lugares do mundo, nitidamente direcionadas ao mesmo propósito, permaneceremos entoando gritos de resistência! Assim como a voz dos nossos ancestrais ecoa em nossas almas e corações, nossos novos gritos de liberdade ecoarão pela eternidadade: Somos Afirika! Em raíz, força, essência, e ao mesmo tempo – como nos lembra Nêgo Bispo – começo, meio, e começo.
[1] Refiro-me ao Pacto da Branquitude anunciado por Cida Bento em seu livro de mesmo nome.
[2] Para saber mais leia Malcom Ferdinand, “Uma Ecologia Decolonial” e Aníbal Quijano “Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina”.
[3] Afirika significa África em Yorubá, utilizo a terminologia seguindo a estratégia de contra colonização proposta por Antônio Bispo dos Santos em seu livro Colonização, Quilombos: modos e significações, de fortalecer nossas próprias palavras e enfraquecer as potentes palavras do colonizador.
Por Viviane Alves
Colunista e membra do Instituto
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7 respostas
Lindo de ver sua escrita literária altiva, dando nomes aos nossos, que são esquecidos por não compactuar em com a subalternização, reconheço em você Sueli Carneiro, Dandara, Maria Felipa, Benedita da Silva e muitas que foram caladas pelo braço opressor seja do feitor ou do diretor, tudo é opressão, que sua escrita alfange, alcance muitas cabeças.
Que texto pontente, tocante e enriquecedor! Da pra sentir daqui que foi escrito com a alma! Ansiosa para ler os próximos!
Sua escrita aproxima e vem de dentro, de um lugar de resistência. Conecta com outras referências, antes silenciadas. Tem força ancestral! O seu ziriguidum. Que bom poder te ler! Aguardo os próximos textos…
Que texto poderoso! Jamais nos calaremos!
que axé, irmã querida! bariká pela potente escrita sobre nós! adupé por partilhar com a gente 🫶🏿
Reflexão potente! Cheia de referências históricas muito tempo apagadas! Já está no meu acervo para compartilhar em minhas formações e nas medicações de leitura.
Viviane, o belo texto revela processos de afinação, o potente instrumento da escrita vai assumindo a fruição poética, afinando o coração, a imaginação e a tradução em escrita. Desejo que a afinação continue produzindo e propagando os teus escritos. Grato por compartilhar