“Desculpe. Eu só sei escrever.”
A mão bonita e preta pendia da cadeira onde sentada, ela rasgava mundos. As unhas vermelhas apontavam para o lápis caído no chão. Sobre a mesa, além da máquina de escrever, havia canetas e papéis. Em um fundo branco se lia: “por quanto tempo ainda…” Sua letra bonita, redondinha e bem-feita, entregava que aquela não era a primeira vez que ela escrevia à mão.
Ao lado do papel onde se lia a frase última, havia um cupom fiscal amassado. Em letras negritas, o nome de um supermercado, um horário e uma cidade: Porto Alegre. As mesmas mãos que agora pendem da cadeira, horas antes carregaram sacolas e antes ainda, um cesto de compras, também vermelho. No labirinto do cotidiano, sua simples necessidade era comprar comida. O coração palpitava forte a cada esquina, entre queijos e caixas de sabão em pó. Ao seulado, sempre uma sombra além da sua, a acompanhava. O ritmo frenético aumentava à medida que ela se movia entre os corredores. A cada escolha, uma palpitação. O que haveria de errado?
Como pode alguém ter duas sombras? Mas nos corredores do labirinto da fome, ela tinha sempre mais de uma.
A cabeça tentava fugir para outros pensamentos. Lembranças boas de labirintos da infância, onde tudo parecia doce. Agora, neste correr sem sair do lugar, até a fome ela foi perdendo, enquanto sua segunda sombra foi se multiplicando, seu coração pulando mais e mais e mais… “já era hora de ir embora”, ela pensou. Foi para o caixa, pagou pelas suas compras e as sombras todas, fragmentadas, riam e cochichavam coisas. E ela só pensava: “por quanto tempo ainda”.
Escrita não é jogo de mímica
Não se escreve esperando que o outro adivinhe o que você quis dizer. Se escreve dizendo. Sem pedir licença, sem cuidado e sem medo. Quem disse que se escreve assim? Como fazer? Apenas deixar-se levar pelos dedos no teclado, pela voz no microfone, pela linha do tempo.
Aline de Moura Rodrigues
Professora e colunista do Instituto

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