Prezados leitores, começo esse texto falando que sou uma mulher negra de 39 anos que nunca ficou sozinha, desde os 14 anos. Desde que comecei a namorar, engatei uma relação na outra e hoje sou casada há 18 anos, não que isso seja uma coisa boa, ou seja…não sei. Mas sempre ouvi falar na solidão da pessoa negra, eu achava que era mito, afinal eu nunca tinha sentido essa solidão, não essa solidão sozinha, porque a solidão a dois também existe. Mas com o tempo e o despertar crítico, comecei a observar ela é real, e ta ali. Saindo com as minhas amigas brancas, mesmo não tendo como objetivo procurar relacionamento, percebi que eu só era opção depois de uma hora da manhã quando faltam poucas opções na “balada”, e o álcool já tomou quase todo mundo. E aí comecei a entender o que minhas amigas pretas falavam e sentiam, Não era só o silêncio dos dias ou a ausência de carinho — era algo mais profundo: a sensação de não ser visto como alguém digno de amor. A solidão da pessoa negra, eu entendi depois, não é só individual. Ela é construída historicamente, alimentada por uma sociedade que muitas vezes nega à nossa pele a delicadeza, o afeto, o cuidado.
Foi lendo Tudo Sobre o Amor, de bell hooks, que comecei a enxergar isso com mais nitidez. Ela fala que o amor é mais do que um sentimento: é uma escolha, uma prática, um compromisso ético. Isso me fez perceber como fomos ensinados a amar mal — e, pior, a não nos amar. Para pessoas negras, esse desamor é ainda mais cruel, porque se mistura com o racismo, com o abandono, com a ideia errada de que devemos ser fortes o tempo todo, mesmo quando estamos despedaçados por dentro.
hooks destaca que o amor não pode existir onde há dominação. Essa premissa é fundamental para pensar a experiência da solidão negra, especialmente quando se compreende que a sociedade racista estrutura relações que desumanizam pessoas negras e frequentemente as excluem do ideal de amabilidade, beleza e valor afetivo. A ausência de amor, nesse caso, não é apenas individual, mas social e sistêmica
Também comecei a acreditar na possibilidade de outra forma de existir. Uma forma em que a gente se olha com gentileza, em que o amor entre nós — amor romântico, amor de amizade, amor de comunidade — pode ser um lugar seguro. Um lugar de cura.
Para hooks, amar é um ato revolucionário. Quando pessoas negras decidem se amar, amar umas às outras e reivindicar o direito de serem amadas de forma plena, elas desafiam as estruturas de poder que as mantêm isoladas. No entanto, essa luta não é simples. A solidão negra é frequentemente silenciada, deslegitimada ou romantizada. Mulheres negras, por exemplo, são muitas vezes vistas como naturalmente fortes, o que acaba por negar sua vulnerabilidade e necessidade de afeto. Homens negros, por sua vez, sofrem com a desumanização que os impede de expressar sentimentos de forma segura.
Hoje, percebo mudanças. Vejo mais pessoas negras falando sobre afeto, sobre vulnerabilidade, sobre amar e ser amadas de verdade. Vejo relacionamentos entre pessoas negras florescendo com respeito e cuidado, fugindo do padrão de dor que tantas vezes nos foi imposto. Vejo homens negros se permitindo sentir. Vejo mulheres negras sendo acolhidas em sua inteireza, não apenas na força. Vejo pessoas negras LGBTQIA+ criando redes de apoio que são puro afeto e resistência.
Ainda temos muito a caminhar, mas há beleza no que está sendo construído. Estamos aprendendo a amar de verdade — a nós mesmos, aos outros, à nossa história. Estamos desfazendo a ideia de que o amor não é para nós.
A solidão ainda existe, mas já não é tudo o que somos. Cada vez mais, escolhemos o amor. E como diz bell hooks: “O amor é a única coisa que pode nos libertar”. Eu acredito nisso. E talvez, no fundo, sempre acreditei.
Referência:
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante. 2021.
Por Rafaele Ribeiro
Colunista e membro do Instituto
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