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Bioética e conceitos de Saúde/doença: a mitologia contida nos Itans de Exu e Omulu num conceito decolonial

Imagem criada com IA

A decolonialidade nos convida a libertar o pensamento das lógicas coloniais, eurocentradas e hegêmonicas que impuseram valores ocidentalizados, europeus e brancos como universais. No campo da saúde, torna-se necessário questionar a hegemonia do modelo biomédico moderno como única forma legítima de cura, de tratamento, ou, com notas de utopia, de se alcançar o que chamamos de “saúde”, enquanto estado humano.

Sustentada por um paradigma racionalista, mecanicista e universalista, a biomedicina moderna dita e interfere, desde a sua consolidação enquanto hegemônica, em todos os processos e tomadas de decisão em saúde no mundo ocidental e nos ocidentalizados. Nela, no lugar da totalidade do ser, o que está em foco é o corpo, entendido como uma máquina, passível de fragmentação para ser compreendido e regulado.Com total influência dos contextos histórico, social, político e cultural que sustentam essa visão,  a doença é compreendida como um mal funcionamento das engrenagens biológicas, um defeito interno. A cura, por sua vez, é entendida como o resultado de uma intervenção técnica e especializada conduzida por um profissional que domina o padrão da doença e seus protocolos de tratamento previamente estabelecidos.

Esse modelo se apresenta como científico, neutro e objetivo, mas expressa e sustenta uma visão de mundo que separa corpo, mente e ambiente, desconsiderando a totalidade do ser e apagando dimensões sociais, culturais, emocionais, espirituais e também processuais do adoecimento. Sendo assim, acaba por produzir uma compreensão fragmentada e insuficiente da saúde, que privilegia o sintoma em detrimento da experiência, o tratamento protocolar em lugar do cuidado e a técnica acima do encontro e da escuta. Ao isolar a pessoa da totalidade que a compõe, o modelo biomédico reduz o sujeito a objeto de intervenção, convertendo o cuidado em procedimento e a existência em dado clínico evidenciando um esgotamento ético e epistemológico diante da complexidade dos modos de adoecer e de viver.
Considerando os limites e lacunas da conceituação hegemônica em saúde, a disciplina “Bioética e conceitos de Saúde/doença: a mitologia contida nos Itans de Exu e Omulu num conceito decolonial”, dentro do programa de mestrado em Bioética, Ética aplicada e Saúde Coletiva da PPGBIOS, nos trouxe o contato com uma perspectiva de mundo cuja lógica difere significativamente da ocidental. Ela nos convidou a conhecer, interpretar e compreender os itans de Exu e Omolu valorizando saberes ancestrais, populares e espirituais, não apenas como formas legítimas de cuidado, mas como modos eficazes e potentes de promover e conceituar saúde e , também reconstruir relações entre corpo, comunidade e natureza. (aposta nesse modelo numa alternativa ao hegemônico)

Convidar tal cosmo-perspectiva para o ambiente acadêmico em saúde, nos possibilita lançar luz à insuficiência do modelo dominante, colocar em comparação (e, portanto, em questão) e tensionar uma série de paradigmas já comentados anteriormente. Ao fazer isso, podemos entender que saúde é também território, ancestralidade, espiritualidade, corpo e coletividade, não apenas ausência de doença, mas sem parar por aí. Porque não é suficiente dizer que se trata do negativo da doença, é preciso apontar um caminho, não necessariamente uma definição. E, neste caminho, orgânico e processual, saúde é também, ou, principalmente, movimento e dança.

Nas religiões de matriz africana, como o Candomblé, Umbanda, Batuque, entre outras, o corpo e o espírito são indissociáveis, bem como o que se chama de mente. Saúde e doença são compreendidos em dimensões física, espiritual e social, relacionadas ao equilíbrio com os orixás, com o axé,  com o ambiente e com a comunidade.
Compreender Exu em seus itans e, ao mesmo tempo, realizar um movimento de associar essa análise às discussões acerca de saúde e doença encaminhou uma reflexão sobre como Exu acaba sendo visto como uma espiritualidade “ruim”, com influência de uma visão cristã, mesmo entre pessoas adeptas das religiões afro-diaspóricas. Os itans de Exu revelam que, muitas vezes, o que é percebido como oportunismo, maldade ou arrogância corresponde, na verdade, a uma busca por realizações pessoais profundamente conectadas com o estabelecimento de um bem-estar mental. Exu ensina também sobre a importância da obediência, da disciplina e da fé. Em várias passagens, ao respeitar o sagrado dentro de um processo hierarquizado, ele alcança o que poderíamos chamar de qualidade de vida.

Nesse contexto, os itans dos Orixás dentro da comunidade do candomblé são vividos todos os dias, em toda ritualística, através da obediência que se deve ao sagrado e, por consequência, à hierarquia representada pelo “pai/mãe de santo”. A obediência e o sacrifício são caminhos que nos levam ao bem estar, tanto na esfera individual quanto na coletiva.

Omolu é popularmente conhecido como o Orixá da doença, da varíola, aquele que deve ser temido porque traz a morte. Porém na nossa concepção Omolu mais uma vez nos convida a repensar disciplina e obediência, sobretudo na esfera da humildade.
Em uma leitura decolonial, Omulu mostra que doença e deficiência não são castigos divinos, e não apenas convida, como convoca a comunidade à inclusão. Em diversos momentos o simples ato de excluir Omolu, não em um contexto de corponormatividade, mas de simples desconhecimento, trouxe consequências negativas para toda a comunidade. Logo, fica claro que o conceito social de deficiência, que a entende como uma construção resultante da interação limitadora imposta pela sociedade a indivíduos com determinadas características, se sobrepõe ao modelo biomédico ao ampliar a compreensão sobre o tema, evidenciando que o físico também não se separa do social nem da espiritualidade.

Outra questão relevante presente nos itans de Omolu, ainda que não diretamente abordada na disciplina, é o lugar da mulher na sociedade afro-diaspórica. O sexismo não é um sistema exclusivo do eurocentrismo, também esteve presente em África. Entretanto, a mitologia nos mostra que a mulher narrada nas cosmologias africanas ocupa um lugar que não é de submissão.

Quando, em um Itan, Nanã “abandona” Omolu, é trazido para a cena a possibilidade, e, por que não a necessidade, de pensar que o amor materno não é soberano e que esse amor pode se manifestar de outras formas, como no caso, abrindo mão da sua maternidade para alguém que de fato deseje ocupar esse lugar e que o faria de uma melhor maneira.

Um corpo saudável é aquele que está em harmonia com seu ori, com a natureza e com sua ancestralidade. A doença pode ser compreendida como um desequilíbrio espiritual que se cura com banhos, rezas, ervas, oferendas e rituais capazes de restabelecer essa energia vital; ou, em certos casos, simplesmente com obediência e fé.
Essa outra maneira de pensar, sustentada por uma outra “cosmo-percepção” tensiona e questiona a hierarquia que toma a medicina ocidental como “ciência” e as práticas afro-brasileiras como “crendices”. Ao reconhecer o saber das religiões de matriz africana como conhecimento válido, restituem-se dignidade e legitimidade a corpos e culturas historicamente marginalizados.
Nos terreiros, cuidar é ato político, comunitário e natural. A cura envolve o cuidado ao bem-estar coletivo, o acolhimento, a partilha de alimentos, o respeito aos ciclos naturais e o cuidado com o outro. Isso vai contra a lógica individualista e fragmentada do sistema biomédico.

A caminhada no sentido a uma outro modo de vida, virtuoso, possibilita a construção de uma outra conceituação de saúde e doença. Esse movimento implica deslocar os olhares e chamar outras perspectivas de mundo para compor o campo do cuidado. Ao reconhecer nos Itans de Exu e Omolu caminhos de compreensão sobre o equilíbrio, a disciplina e a humildade, abre-se a possibilidade de reconstruir sentidos para a saúde que não se restrinjam à ausência de doença, mas que a compreendam como expressão da vida em movimento.
Os saberes das religiões de matriz africana, ao articularem corpo, espírito, comunidade e natureza, propõem uma ética virtuosa e uma epistemologia do cuidado fundada na coletividade, na ancestralidade e na reciprocidade. Essa cosmo-perspectiva desloca hierarquias e convoca a academia a um exercício de escuta e diálogo com outras formas de conhecimento, reconhecendo nelas não o exótico ou o místico, mas o científico em outra linguagem.
Assim, questionando e tensionando os limites da racionalidade moderna e convidando a multiplicidade de modos de cuidado à saúde, as perspectivas não-colonizadas nos convidam a reencantar a própria ideia de saúde. Não mais um estado fixo a ser alcançado, mas um processo vivo, em movimento e em constante relação.

Rafaele Ribeiro e Carolina da Silva 
Membro e colunista do Instituto e Colunista Convidada

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