Omolu e Obaluayê são faces de um mesmo princípio sagrado: o poder da transformação, da vida e da morte. Filho de Nanã e Oxalá, nasceu marcado pela varíola e rejeitado por sua mãe, mas foi acolhido por Iemanjá, que o curou e lhe revelou os segredos das águas profundas e da renovação. Desde então, tornou-se guardião das doenças e das curas, aquele que conhece as dores da humanidade porque as viveu em sua própria pele.
Na sua forma jovem, Obaluayê, caminha ao lado de Nanã, guardando as passagens da morte e apagando as memórias dos que partem. Já como Omolu, em sua forma mais velha, guia os espíritos junto de Iemanjá rumo à reencarnação, fazendo a ponte entre mundos. É ele quem nos lembra que nada termina de fato: tudo se transforma, se reinventa, se refaz.
Suas roupas de palha escondem cicatrizes, mas também manifestam o sagrado: a palha é véu e proteção, símbolo de humildade, mistério e poder. Omolu cobre suas dores com dignidade e nos ensina que as marcas da vida não são fraqueza, mas testemunhos de sobrevivência. Na simbologia de Omolu e Obaluayê, o cachorro é um de seus companheiros mais fiéis, mensageiro e guardião das passagens. Ele representa a lealdade, o instinto e a ligação entre mundos, acompanhando o orixá tanto nos caminhos da morte quanto nos da vida. É ao lado do cachorro que Omolu manifesta sua força de cura: assim como o animal fareja o invisível e protege quem ama, o orixá acolhe nossas dores escondidas, cicatriza feridas profundas e ensina que a verdadeira cura nasce na escuta, na presença silenciosa e no afeto que se oferece sem pedir nada em troca.
Ao longo da história, o povo negro no Brasil enfrentou violências profundas marcadas pela escravidão, pela marginalização e pelo racismo estrutural que até hoje molda as desigualdades sociais. Ainda assim, mesmo diante de opressões que tentaram apagar culturas, corpos e vozes, a resistência negra sempre floresceu em diferentes formas: nas religiões de matriz africana, nas artes, nos quilombos, nas universidades e nos coletivos que seguem se reinventando para proteger a vida e afirmar a dignidade. Como lembra Lélia Gonzalez, a luta negra no Brasil é também um projeto de humanidade, porque denuncia o racismo e, ao mesmo tempo, propõe caminhos de liberdade e solidariedade para todos.
Esse caminho de resistência não é apenas denúncia, é também cuidado. Pessoas negras construíram formas de amar, ensinar e proteger suas comunidades, mesmo quando a sociedade negava direitos básicos. Esse afeto coletivo é força política, capaz de transformar feridas em resistência e silêncios em memória. Seguir com amor e humanidade, mesmo após séculos de exclusão, é reafirmar a potência do povo negro em cuidar de si e de seus coletivos, lembrando sempre que a luta contra o racismo é também uma luta pela vida em abundância, pela cura e pelo florescimento de toda/e/os.
E aqui está a conexão com nossa própria história coletiva. Quando falamos em quilombo, não podemos esvaziar a força desse conceito. Quilombo não é apenas metáfora de resistência: é projeto político, é cuidado entre pares, é espaço onde o coletivo se sobrepõe ao individual. Letramento é muito mais do que ser ou devir ser. Letramento é ter em seu íntimo, mesmo que (des)construído o entendimento que não podemos utilizar de mesmos recursos que nos oprimem para criar novos futuros. Não sou eu que digo isso, isso Lorde e hooks já avisaram e não escutamos. Não posso chamar de quilombo espaços que mesmo interno há competições. Não posso chamar de quilombo espaços em que o crescimento individual é presado com maior esforço que o coletivo. Em um espaço onde todos tem empregos, disputar para quem será a pessoa escolhida pelos brancos para uma melhor vaga de trabalho, uma oportunidade de ascenção ou esquecer que existem colegas que encontram-se sem nenhuma oportunidade é, sem dúvida, tudo, menos agir de maneira a proteger nossos pares. Como dizemos em nossa reflexão sobre a possibilidade de quilombo, não há como nomear de quilombo espaços em que a competição prevalece, em que a ascensão individual é priorizada em detrimento do cuidado com os nossos. Omolu e Obaluayê nos lembram justamente o contrário: que a verdadeira cura nasce no afeto, no silêncio que escuta e na coletividade que sustenta. Que sejamos sempre balsámos e não reproduzamos violências entre os nossos pares.
Atotô, Obaluayê!
Fontes:
hooks, b. (1994). Teaching to transgress: Education as the practice of freedom. New York: Routledge.
Lorde, A. (1984). Sister Outsider: Essays and Speeches. New York: The Crossing Press.
Rats, Alex (2007). Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz. Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo: Instituto Kuanza
https://www.caboclopenaverde.com.br/omulu-obaluae-3/
Leite, G. de O. (2020). OMOLU, OBALUAÊ, SÃO LÁZARO, SÃO ROQUE, A FÉ, A MEDICINA DO POBRE. Revista Fragmentos De Cultura – Revista Interdisciplinar De Ciências Humanas, 29(4), 672–683. https://doi.org/10.18224/frag.v29i4.7748
Fundadora e colunista do Instituto

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