No dia 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro foi palco de uma das operações policiais mais letais de sua história recente. A ação nos complexos da Penha e do Alemão resultou em ao menos 64 mortos, segundo registros da imprensa formal, superando todas as operações anteriores no estado. O Portal de comunicação Voz das Comunidades, veículo de informação composto por moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro, contabilizou 140 mortos, mais do que o dobro do divulgado pela imprensa tradicional. Moradores das comunidades relataram tiroteios que se estenderam por horas, bloqueios de vias, corpos deixados em áreas de mata e um clima de guerra urbana.
Esses dois conjuntos de dados, o “oficial” e o comunitário, indicam que não se tratou apenas de uma operação localizada de combate ao crime, mas de uma atuação intensa e generalizada, em que a lógica de “invasão” de favela convergiu com a da militarização e da letalidade extrema. Esses episódios revelam o funcionamento cotidiano de um Estado que administra a morte como política estatal. Nas favelas e periferias, a violência não é exceção, é regra, é método. O discurso da “guerra às drogas” serve como justificativa moral e jurídica para a produção constante de mortes. Em cada incursão, o Estado reforça a mensagem de que há vidas que valem menos, corpos que são descartáveis e territórios que podem ser sacrificados em nome da “ordem”.
Essa lógica é o que Achille Mbembe (2003) define como necropolítica: o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer. O autor explica que a soberania moderna se expressa, em sua forma mais extrema, quando o Estado reivindica o direito de matar em nome da segurança, da civilização ou da paz. Nas favelas do Rio, a necropolítica se materializa na militarização dos territórios, na criminalização da pobreza e na indiferença diante dos mortos. São zonas de exceção, espaços onde a Constituição parece suspensa e onde o poder policial atua sem responsabilidade ou limite.
Essa necropolítica é herdeira direta da biopolítica descrita por Michel Foucault (1979). O filósofo francês mostrou que, a partir do século XVIII, o poder deixou de se exercer apenas pelo direito de matar, passando a se organizar em torno da ideia de “fazer viver e deixar morrer”. A biopolítica é, portanto, a administração da vida, mas também a autorização da
morte daqueles que não se enquadram nos critérios de utilidade e normalidade social. No Brasil, essa fronteira entre o “fazer viver” e o “deixar morrer” se traduz em linhas de cor, renda e território. O Estado investe em vida nas zonas brancas e abastadas, enquanto administra a morte nas áreas negras e pobres. É nesse ponto que a biopolítica se converte em necropolítica, quando o direito de viver passa a ser distribuído de forma desigual e a morte se torna uma forma de governo.
O contraste entre o tratamento dado às favelas e às zonas ricas explicita essa desigualdade. Nas comunidades, helicópteros atiram de cima, blindados destroem casas e corpos são recolhidos sem identificação, quando são recolhidos. Já em bairros como a Faria Lima ou o Leblon, onde também circulam armas e práticas ilegais, o Estado age com cautela, mandado judicial e garantias processuais. A diferença não está na presença de armas, mas na cor e no CEP dos envolvidos. O que em um território é massacre, em outro é operação de rotina.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, assegura o direito à vida, à igualdade e à dignidade da pessoa humana. Mas, diante desses episódios, torna-se evidente que tais direitos são aplicados de modo seletivo. A favela permanece sendo o espaço onde o Estado experimenta seus limites, onde a legalidade é substituída pela exceção e onde a morte é normalizada como instrumento de governo.
Essas operações não apenas violam direitos humanos, mas também corroem a própria legitimidade da democracia. A segurança pública, em uma sociedade democrática, deveria significar proteção da vida e não a gestão do medo. Quando o sangue se torna o preço da estabilidade, o Estado abdica de sua função ética e transforma a cidadania em privilégio.
O que se desenha, portanto, é a continuidade de uma política que decide quem merece viver e quem pode ser eliminado e que chama isso de segurança. O desafio é romper com essa lógica e recolocar a vida, sobretudo a vida negra e periférica, no centro do projeto democrático
Thaís Santana
Membro e colunista do Instituto

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